Quem matou Odete Roitman?
A
semana de 7 de janeiro de 2013, foi muito inusitada pra mim.
Revi uma pessoa a qual não via há, pelo menos, 22 anos. Estupeficante.
Nós fomos tão apegadas, uma a outra, dos meus 11 aos meus 16 anos, que é
extraordinário imaginar que ficamos 22 anos sem termos contato, sem sabermos
nada uma da outra, zero de notícia. Verdade.
Por que será que a vida nos afasta das pessoas?
Os motivos devem ser diversos, é claro.
Mas, como bem escreveu um pensador chamado Rodolfo Rodrigues dos Santos,
se o sentimento for verdadeiro, mais cedo ou mais tarde, a vida proporciona um
novo reencontro.
E você tem toda razão, Rodrigo. No meu caso foi mais tarde, bem mais
tarde, mas a vida me proporcionou um reencontro com uma querida amiga.
Logo, como reclamar da vida? Não devíamos fazer isso nem por um instante.
Retiro tudo de ruim que já falei da minha. Tá tudo retirado.
A sensação que eu tive com a possibilidade de revê-la foi incrível.
Foi tudo tão rápido. O acerto para o nosso reencontro foi muito
vertiginoso.
Nós nos conectamos no FB, trocamos algumas mensagens, por lá mesmo, e
pronto...marcamos o nosso jantar, na Camelo da Juscelino Kubitschek, para o dia
8 de janeiro, às 20h.
Choveu tanto naquele dia. Foi mais um daqueles dilúvios em São Paulo.
Eu, mais cedo ou mais tarde, chegaria ao ponto de encontro, pois iria do
Citi, da Paulista, para lá, mas a Alessandra, que deixou o Caxingui e hoje mora
na Granja Viana, teria que ir de lá, daquela lonjura, para a Juscelino.
Lá pelas 18h, do dia 8, comecei a achar que ela iria me ligar para
desmarcar, mas não ligou. Tava tudo certo. Iríamos mesmo nos ver.
Eu cheguei à Camelo umas 19h50. Até antes do combinado. O mundo estava
caindo lá fora. Para descer do taxi, na porta da pizzaria, já foi um parto. A
rua tinha virado um rio. Mas, depois de ser ajudada, consegui saltar do carro.
Lá pelas 20h20, meu celular tocou. "Lô, é a Alê. Você já
chegou?" "Oi, Alê, já cheguei sim. Cheguei cedo até. Cadê você?"
"Estou parada no túnel da Juscelino, mas estou chegando. Saí de casa às
19h, acredita?" "Acredito. A cidade está um caos. Mas fique
tranquila. Estou aqui, ansiosamente, esperando por você. Já vou pegar uma mesa
então, tá bom?." "Tá bom." "Beijo." "Beijo."
Fazia mais de 22 anos que não nos falávamos e esse, depois de todos
esses anos, foi o nosso primeiro diálogo. Todavia, naquele momento, era só o
que tínhamos para dizer uma para a outra. Acho que nem passou pelas nossas
cabeças que tanto tempo tinha se passado. Mesmo porque, até pelo diálogo trivial,
pareceu não ter passado mesmo.
Uns vinte minutos depois do nosso papo, a Alê surgiu...toda linda e
maravilhosa, no auge dos seus 42 dois anos. O tempo só fez bem para ela. Muito
bem.
Nós nos abraçamos, nós nos emocionamos com o reencontro, bebemos muito
vinho, conversamos, comemos pizza, choramos, contamos, uma para a outra, sobre
as nossas vidas, sobre o que construímos e sobre o que subvertemos, sobre as
nossas famílias, irmãos, filhos, relembramos uma série de momentos malucos
pelos quais passamos juntas lá atrás. Foi muito deleitável.
Saímos de lá depois da meia noite e trinta, mas só porque já era tarde e
eu tinha uma reunião bem cedo no dia seguinte e não porque tínhamos, se quer,
chegado ao fim do primeiro tempo do nosso papo. Não passamos nem perto disso.
Muitos outros encontros desses ainda virão. Aliás, já estamos programando um
novo para as próximas semanas.
Mas me deu um estalo para escrever esse novo texto porque no meio da
nossa relembrança sobre os momentos insólitos pelos quais passamos juntas, nós
nos recordamos de um que só foi cômico porque não foi trágico, mas podia ter
sido. Aliás, ficou a um milímetro de não ter sido funesto.
Naquele dia, podíamos ter perdido o nosso equilíbrio mental. Podíamos
ter dado início ao processo de não virmos a ser quem nos tornamos hoje.
Pois bem, então, posto tudo isso, vamos ao conto.
Tudo aconteceu em 1988.
Alguns fatos marcantes daquele ano?
O judoca brasileiro Aurélio Miguel conquistou a primeira medalha de
outro olímpica brasileira, na categoria meio-pesado, do judô nos Jogos Olímpicos
de Verão de Seul.
A nova constituição brasileira foi promulgada, a Constituição Cidadã.
O piloto Ayrton Senna conquistou seu primeiro título mundial de F1.
A embarcação Bateau
Mouche, com 153 passageiros a bordo, naufragou na Baía de Guanabara,
deixando 55 mortos.
A novela Vale Tudo, de Gilberto Braga, que, na época, ainda era exibida
no horário das 20h, foi ao ar, na Globo, de 16 de maio daquele ano até o dia 6
de janeiro de 1989.
Acho que deu para dar uma contextualizada boa, não?
Mas enfim, para que esse texto também faça sentido para aqueles que
ainda não existiam naquela época, preciso contar que na novela Vale Tudo havia
uma personagem vilã, chamada Odete Roitman, vivida pela genial Beatriz Segall,
que, em determinado capítulo, foi assassinada. Depois desse episódio de sua
morte, não se pensava em mais nada no Brasil. As pessoas só queriam saber de
uma coisa: quem havia matado a Odete Roitman? Quem matou Odete Roitman? Esse
virou o jargão da época. Essa foi a pergunta que parou o país entre o final de
1988 e o começo de 1989. O país, genuinamente, cessou a procura dessa resposta,
que, é claro, só veio no último dia da novela. No final das contas, quem havia
matado a Odete tinha sido a Leila, por engano, mas tinha sido ela. A Leila, por
sua vez, tinha sido vivida pela outra "monstra" da telinha, a
maravilhosa e retumbante Cássia Kiss.
Pronto, tudo relatado: novela da época, crime, quem morreu, quem matou,
jargão do momento, país mobilizado.
Acho que não preciso apresentar mais nenhum dado para continuar a narrar
o meu caso extraordinário. Posso seguir.
Não me lembro exatamente da data, só tenho certeza de que era 1988 e de
que a Odete Roitman já tinha morrido na novela.
Estávamos passando o final de semana na casa da Alê, dessa querida amiga
que revi. Os pais dela e sua irmã mais nova, a Fê, estavam no Guarujá. Deixaram
a casa só pra gente.
Vou fazer um parênteses agora.
Eu sempre me considerei uma adolescente equilibrada. Nunca me achei das
piores. Mesmo assim, passei por muitas situações insensatas, coisas diante das
quais hoje, com a cabeça que tenho, talvez me acovardasse.
Contudo, na época, não pareciam coisas tão imprudentes. Além do mais,
equilibrada ou não, eu era uma adolescente, que queria viver novas
experiências...e como toda jovem criança, ou criança jovem, enfrentava períodos
cheios de conflitos. Eu, simplesmente, precisava sentir as coisas.
Fecha parênteses.
Estávamos lá: Loraine, Fábio, Alessandra, Preto, Fernando e Daniela.
A Alê e o Preto estavam na sala de TV. Nós quatro, na sala de estar,
conversando aquelas bobagens deliciosas que os adolescentes conversam.
Não tínhamos mais do que 13, 14, 15 anos. Estávamos no auge da nossa
inquietude mental.
Na época, eu namorava o Fábio, irmão da Alê. Aliás, para quem acompanha
o meu Blog e leu o conto "Meu primeiro beijo!", foi nele, no Fábio,
que o dei.
A Dani e o Fê não ficavam. Eram amigos apenas.
Mas nós todos vivíamos sempre daquele jeito, sempre juntos. Um grude só.
Enquanto a Dani e eu fofocávamos sobre algo, os dois sumiram. Pra falar
a verdade, nós só notamos que eles tinham ficado ausentes quando eles
retornaram à sala.
A feição dos dois, logo que adentraram ao recinto, deu para notar,
estava estranha. Era como se tivessem aprontado alguma coisa.
"O que vocês fizeram?"
"Nada, Lô!"
"Que nada o que, Fernando, é só olhar pra cara de vocês que dá pra
ver que vocês estão aprontando alguma coisa, se é que já não fizeram a merda."
"Sabe o que é, Lô, nós fomos lá em cima, no quarto do meu pai, e
pegamos suas armas."
"Suas o que?"
"Seus revólveres 38."
"O que? Pra que isso, Fábio? O que pretendem fazer com essas armas?
Vocês são malucos?"
"Não se preocupe...a gente só vai dar uma volta na rua com elas e
já volta pra casa."
"Vocês não podem estar falando sério, estão?"
"Estamos sim. Já estamos saindo. Tchau!!!"
E lá se foram os dois, para a rua, no meio do Caxingui, brincar de
polícia e ladrão.
A Dani e eu ficamos paralisadas, perplexas.
"O que a gente faz agora, Dani? Vamos contar para a Alê?"
"Se a gente for contar para ela, vai ser pior. É melhor ela nem
ficar sabendo de nada, Lô."
"Mas e se ela vier para cá agora?"
"A gente inventa alguma coisa, sei lá!"
A puberdade, no geral, é um período difícil para os pseudo-adultos, mas,
principalmente, para os meninos. É nesse período que o corpo e a mente se
desenvolvem mais. Porém, no caso dos garotos, é como se somente o corpo fosse
tomando outra forma. A mente deles custa a funcionar direito, não?
Os dois, finalmente, voltaram da ronda noturna.
Estavam radiantes e se sentindo poderosos. Até o peito dos dois parecia
estar mais inchado, sabe?
Um orgulho só, um pelo o outro.
Até então, a Dani e eu não tínhamos visto as armas. E nem queríamos.
"Fábio, agora que vocês já vigiaram a casa e viram que está tudo em
ordem, por que vocês não sobem e colocam as armas no lugar delas? A sua irmã
ainda não veio aqui ver toda essa movimentação, mas logo, logo, vira!"
"Mas, Lô, as armas estão sem bala. Você acha que a gente é louco?
Eu olhei as armas antes de descer com elas. Tá tranquilo."
Imediatamente após me dizer isso, ele saca a arma da calça. O 38 que o
Fábio estava carregando estava escondido na calça dele, na parte da frente.
O Fernando, por sua vez, também pegou a arma, do seu esconderijo
secreto, e a mostrou para a gente. No caso dele, a arma estava na parte de trás
da calça.
"Vamos brincar de Vale Tudo?"
"Como assim, Fernando, brincar de Vale Tudo?"
"Quem matou Odete Roitman, Lô?"
E os dois começaram a apontar as armas um para o outro e a atirar um no
outro. Dois malucos brincando com armas de verdade.
Um parênteses outra vez.
Só de escrever essa história, estou com o coração disparado. Incrível
relembrar tudo isso.
Fecha parênteses.
Teve uma hora, entre as trocas de tiros dos dois, que o Fernando colocou
a arma bem perto da testa do Fábio e, antes de atirar, perguntou: "quem
matou Odete Roitman, Fábio?" E pum, atirou nele.
O Fábio fingiu ter sido atingido e se jogou no chão, como se estivesse
morrendo.
Depois disso, o Fernando, enlouquecido, como se possuído pela Cássia
Kiss, atirou novamente, mas dessa vez, em direção a um quadro da sala. E pum,
atirou na obra de arte.
Só que, daquela vez, uma bala, de verdade, saiu do seu revólver. Ela
perfurou o quadro e atingiu a parede.
Nós quatro ficamos perplexos com o ocorrido.
O Fábio podia ter acabado de ser morto pelo melhor amigo.
Se o Fernando tivesse dado os dois tiros nele, na testa dele, ele não
estaria vivo hoje, morando na Austrália, há 17 anos, vivendo com sua esposa e
com seus queridos dois filhos.
A Alessandra e o Preto apareceram, gritando, na sala onde estávamos.
"O que foi isso, Fábio? Foi um tiro? O que você fez?"
Ninguém conseguia falar...nós só pensávamos no que podia ter acabado de
acontecer em nossas vidas. Podíamos ter acabado com a vida de seis pessoas por
causa de uma brincadeira idiota.
"Vocês estão malucos, gritava a Alessandra!!! Parecem crianças!!!
Como assim foram andar na rua com essas armas? E depois ficaram brincando com
elas aqui dentro de casa! Vocês podiam ter se matado!!!"
Ninguém dizia nada, só ela.
Passado algum tempo, as armas já estavam guardadas em seus devidos
lugares, sentamos, os seis, para conversar, para pensar em tudo que tinha
acabado de acontecer e para, sobretudo, decidir sobre o que faríamos com aquela
informação.
Contaríamos aos nossos pais?
E o quadro? E a parede?
Foi muita discussão, muita gritaria, muito choro até decidirmos que não
contaríamos nada a ninguém, que aquele seriam um segredo nosso.
Fizemos um pacto.
O Fábio foi pegar um Durepoxi, em algum lugar, eu guardei a bala, que,
aliás, está comigo até hoje, e o Preto saiu para comprar um pouco de tinta, da
cor da parede, e lixa.
Naquela mesma noite, arrumamos a parede.
Não ficou 100%, mas, de longe, não dava para ver que um tiro tinha sido
dado naquela direção.
Mas e com o quadro, o que faríamos com ele?
Ele era um quadro bem grande, muito vistoso, mas muito escuro.
O tiro perfurou a parte inferior direita da tela. A área atingida era
bem escura. De longe, não se via nada.
Resolvemos não fazer nada com ele.
E assim foi.
O Fábio quase se foi, aos 14 anos, o Fernando quase acaba com a vida do
melhor amigo e com a sua própria, a Dani e eu, com certeza, não seríamos mais
as mesmas depois daquela tragédia, a Alessandra, mais velha do que nós, não se
desculparia por não ter cuidado bem da gente e por ter perdido o irmão, e o
Preto, o Preto talvez fosse o único a sair mais ileso dessa história toda...ou
talvez não, não dá para avaliar.
Mas nos safamos dessa.
Nos livramos de não virmos a ser quem nos tornamos.
E é até estranho escrever isso...mas talvez tenhamos nos tornado quem
somos também por conta desse episódio que ocorreu em nossas vidas.
Quem sabe? É impossível não lembrar dele com amargura.
O quadro ainda existe.
Em nosso reencontro, o do dia 8 de janeiro de 2013, após 22 anos sem nos
falarmos, nós nos falamos sobre ele. A obra está pendurada na casa da Alê de
Juquehy.
Perguntei a ela se eles tinham, em alguma momento da vida deles, contado
toda a história aos seus pais. Ela me disse que sim.
Pois eu não contei aos meus até hoje.
Vocês, leitores, são os primeiros a saber dessa minha história por meio
dessa fábula.
Meus pais também saberão por aqui. E depois virá a conversa...é claro
que ela virá...ela sempre vem. Mas agora estou pronta...com quase 40 anos,
chegou a hora do meu desabafo com eles.
E a pergunta que não quer calar...eu hei de conseguir proteger a minha
filha, a minha única filha, de situações anômalas como essa pela qual passei em
1988, com apenas 14 anos?
Eu tenho que conseguir.
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