Eu já morei na Rua Myron Clark, 77!!!


No começo de 1993, entrei no Mackenzie para cursar Administração com Habilitação em Comércio Exterior.

Sempre que me perguntam se eu gostei da minha faculdade, eu digo que sim...e que não.

Por que sim? Porque vivi a concretização dos primeiros melhores momentos da minha vida nesse período e também porque fiz grandes amizades, as quais serão cultivadas, com muita dedicação, para sempre.

Por que não? Porque eu nem aprendi Administração e nem aprendi Comércio Exterior.

Esse foi um curso de mais ou menos de uma coisa e de mais ou menos de outra. Não poderia ter sido bom.

Mas tudo bem. Aperfeiçoei-me, de outras formas, ao longo da minha carreira.

Pois bem. Dito isso, vou agora fazer uma epígrafe...para depois contar uma história.

Comecei a trabalhar quando tinha 13 anos, vendendo amendoim doce na praia. Na época, tinha uma sociedade com a minha prima, Delane, e com duas amigas nossas, a Francilene e a Mílvia.

Primeira observação importante: Loraine e Delane foram invenções das nossas mães, que têm nomes bem mais simples do que esses - Isabel e Luísa. Pra que inventar?

Segunda observação importante: vocês não acham que poderíamos, com esses quatro nomes, ter participado do quadro "Na Lata", do Porta dos Fundos??? Vejam se não http://www.youtube.com/watch?v=NZb0XKHgtjo...nome merda não participa de promoção da Coca Cola!!!

Enfim, vendíamos tudo que fazíamos, mas nunca tínhamos lucro. O dinheiro que arrecadávamos com as vendas só dava para que recomprássemos mais matéria prima e voltássemos a produzir os mesmos amendoins, dia e noite.

O trabalho era insano e nós não ganhávamos nada...embora tenhamos dado boas risadas juntas.

Na época, infelizmente, conhecíamos zero de Pricing, o único dos Ps do Marketing que gera rendimento.

Focalizávamos no Produto, na Promoção, que não tinha igual, e no Ponto de Venda, que também era sensacional, a praia.

Rentabilidade, que é a parte boa, não rolava.

Mesmo assim, considero que o meu primeiro trabalho tenha sido genial: vender amendoim doce na praia...quem me dera poder fazer só isso da vida hoje em dia.

É impressionante como vamos, ao longo das nossas existências, criando necessidades que nunca tivemos. Eu acho que é toda essa nossa criatividade que faz com que viremos reféns de nós mesmos.

Deve ser. Só pode ser.

Bom, até os 16, antes de ir para o meu intercâmbio nos Estados Unidos, exercia a minha atividade de ambulante.

Já aos 17, depois da minha volta ao Brasil, mudei de profissão, fui dar aulas de inglês.

Portanto, quando entrei na faculdade, em 93, diferentemente da maioria dos meus novos amigos, eu já trabalhava, e muito. Agenda cheia.

Contudo, muito ingenuamente, achei que fosse ter um pouco mais de tempo para poder opinar sobre o meu curso, sobre a escolha que tinha feito. Achava que não tinha compromisso, a não ser com os meus alunos, então, que poderia estudar, avaliar se tinha escolhido certo e, quem sabe, vir a ser uma estagiária ou uma trainee em uma boa empresa.

Doce ilusão. Havia me esquecido de que tinha uma mãe ansiosa. Ansiosa ao ponto de já sair procurando um emprego para mim logo no primeiro semestre do meu curso no Mackenzie.

"Filha, você já precisa começar a trabalhar na sua área. Já falei com um aluno meu, que trabalha em uma empresa de exportação, e disse que você quer trabalhar."

"Mas mãe, eu já trabalho. Quem disse que eu quero deixar de fazer o que já faço hoje? E, por outro lado, nem sei direito do que se trata a minha área. Não seria melhor eu andar um pouco mais na faculdade para depois procurar alguma coisa?"

"Imagina, filha. É bom começar cedo. Você já vai ganhando experiência...e o seu próprio dinheiro."

"Eu já comecei cedo, mãe...já tenho alguma experiência."

Palavras em vão.

E lá fui eu, sem refutar.

No segundo semestre da faculdade, comecei a trabalhar, com a carteira assinada e tudo, na área de exportação aérea da Panalpina, one of the world's leading providers of supply chain solutions.

Perguntem-me se me contrataram como estagiária? Talvez como trainee? Que nada, eu fui contratada como Assistente Junior de Exportação.

Como ser Assistente de alguém para cuidar de algo totalmente desconhecido? Sei lá.

Mas duas coisas tinham me tornado diferente dos outros candidatos...imagino eu - a indicação do aluno da minha mãe e o meu super inglês da época.

Eu, realmente, mandava bem no inglês nos anos 90. Acho que fez toda a diferença.

Findada a epígrafe, vamos a história.

Da Panalpina, fui para o Grupo Solvey, também para a área de exportação.

Nessa empresa eu era responsável pela exportação terrestre de plástico, de todos os tipos, para a América Latina.

De lá, fui trabalhar em uma empresa menor, bem menor, a Center Cargo.

Embora não fosse da geração Y, tinha lá minhas inquietudes. Precisava mudar, precisava ter mais exposição, precisava ganhar mais. E fui atrás de resolver a minha impetuosidade.

Em 1997, comecei, então, a trabalhar na Center Cargo Transportes Internacionais Ltda.

Os donos eram o Hélio e o Jair, para os quais eu respondia diretamente. A empresa ficava perto do Aeroporto de Congonhas.

Da minha casa até lá eu demorava, no máximo, dez minutos andando.

E é nesse ponto que começo a minha patranha.

Em casa, sempre acordamos muito cedo. Os meus pais, professores, começavam a dar suas aulas, no geral, entre 7h e 7h30. O meu irmão, sempre avesso a trânsito, saia de casa com as galinhas, para não se meter nele. E eu, como nunca dormi bem na vida, nunca tive problemas para acordar. Era como se eu sempre estivesse a postos.

Em um determinado dia de 1997, como de praxe, os meu pais saíram para trabalhar, o meu irmão saiu para trabalhar e eu fiquei para trás, arrumando-me para também sair.

Calmamente, tomei o meu banho, vesti a minha roupa, sequei os meus cabelos, arrumei-me toda e desci, para tomar o meu café da manhã.

Naquela altura, pensei eu, a Dona Antônia, que trabalhava lá em casa, certamente já estava na labuta.

A nossa casa era um sobrado. Ela tinha três andares. Os quartos ficavam em cima, as salas e a cozinha no piso intermediário e o escritório e a lavanderia no piso de baixo.

Desci a escada, que dava para a sala de jantar, e me encaminhei para a cozinha, que ficava para o lado direito. No entanto, antes de seguir para lá, dei uma olhada para o lado esquerdo. Não sei bem porque, daquela vez, fiz aquilo, mas fiz.

Quando me voltei para o lado esquerdo, algo estranho aconteceu.

Alguém, que estava dentro da sala de televisão, olhou para mim e depois se escondeu.

Caramba, pensei, tem alguém aqui em casa. Quem será? Será que alguém veio arrumar alguma coisa na sala de TV? Será que o meu  pai combinou algo com alguém, mas não me avisou? Quem seria aquela pessoa, que me olhou e depois se escondeu?

Cheia de questões na cabeça, segui para a cozinha, em busca das respostas.

Quando cheguei lá, a Dona Antônia estava adentrando a cozinha, vinda, provavelmente, da lavanderia.

Olhei para ela e ela para mim.

De repente, uma voz, que veio por detrás de mim, soltou um "Bom dia!"

A Dona Antônia, imediatamente, respondeu: "Bom dia!"

Pronto. Foi o bastante para que eu entendesse o que estava havendo ali, diante dos meus olhos.

Se ela não o conhecia, a ponto de ter lhe dado bom dia, era porque acabara de achar que o ser estava em minha companhia.

Eu, por minha vez, havia ido até a cozinha para entender quem era aquele indivíduo que estava em nossa sala de TV.

Se nenhuma de nós sabia quem ele era, ele só podia ser um ladrão.

Procurei manter a calma e fingi que ele era, praticamente, da família.

Também dei bom dia, assustando a Dona Antônia, passei por trás dele e segui para a sala de TV.

Durante esse meu movimento, reparei que ele tinha o nosso vídeo cassete debaixo do braço.

Quando cheguei na sala, caos. Tudo estava fora do lugar. Os discos, de vinil, do meu pai estavam todos espalhados pelo chão. Parecia que umas dez pessoas tinham passado por ali.

Comecei a tremer, pois me dei conta de que tinha deixado a Dona Antônia sozinha, com um bandido, na cozinha.

Corri ao encontro dela.

Ela, que, em 97, já não era nova, estava sentada, no chão, branca, descorada.

"Lô, tinha um ladrão aqui dentro. Ele acabou de pular o muro e a grade que separam as duas casas. Ele me deu um empurrão e saiu correndo. Pulou o muro com a mesma agilidade e ofensa de um gato. Eu nunca vi um ser humano fazendo isso."

"Acalme-se, Dona Antônia, está tudo bem."

Consolei a idosa até que tivesse a certeza de que estava tudo bem com ela.

Fiquei com medo que ela tivesse um treco.

Liguei para o meu pai, para contar o que tinha acontecido.

"Pai, você não sabe o que houve aqui em casa."

"O que, filha? Por que você ainda não está trabalhando?”

"Acabaram de roubar a nossa casa. Tinha um cara aqui dentro...blá, blá, blá..." e contei toda a história.

"E você deixou ele levar o nosso vídeo?"

"Que pergunta foi essa, pai?" Você ouviu o que eu acabei de te contar?"

"Ouvi sim, Loloka, mas se ele até deu bom dia para vocês duas, você podia ter mandado ele deixar o vídeo!"

É mole?

Pois é. Até desconsiderei o que o meu pai me disse naquela hora. Ele não sabia o que estava falando.  Não tinha participado da epopeia com a gente.

Sempre que penso nessa história, algumas coisas me vêm à cabeça: que eu nunca mais quero morar em casa, que tudo poderia ter sido bem pior, pois ele podia ter subido enquanto eu estava tomando banho e me arrumando para ir trabalhar, que podiam ter sido mais de um, que eu podia ter sido estuprada, que nós duas podíamos ter morrido...por que não?

Resultado de tudo isso?

Ficamos nessa casa de 1977 a 2011, durante mais de 30 anos. Ao longo desse tempo, ela foi se tornando uma fortaleza, cheia de grades, trancas e trincos, portas blindadas.

Vivemos presos por décadas e mais décadas, protegendo-nos da falta de proteção que o Estado nos dá.

E agora, em 2013, tudo só está pior.

Hoje em dia, todos nós, que vivemos naquela casa, moramos em prédios, pois os consideramos menos piores, menos inseguros, mas existimos com a mesma apreensão que vivemos em anos passados, sempre aptos para o que está por vir...pois algo está por vir...isso é inevitável.

O problema é que quando chegar o dia inevitável, talvez não consigamos nem dar "bom dia" para o delinquente, se for apenas um, pois terá sido tarde demais para isso.

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