Televisão de cachorro!

Vamos a outra história que me contaram há alguns dias. Assim como aconteceu com o meu conto “É barro, é”?, senti-me impulsionada a escrever a minha compreensão dela.

Mirian morava com sua filha, Vássia, em uma rua muito calma, bem no coração de São Paulo, nos Campos Elíseos. O paralelepípedo começava a ser substituído pelo asfalto. Uma pena, já que o sossego da região era seu grande charme.

Localizado no distrito de Santa Cecília, no centro, esse foi o primeiro bairro nobre da cidade, onde viveram várias das famílias abastadas. Mirian era membro de uma delas. Uma legítima Franco de Melo.

Seu sobrenome, no entanto, nunca pesou. Aliás, mal havia resquícios da fortuna que sua família um dia teve. A propósito, um dos motivos que a mantinha naquele bairro era a falta de dinheiro. Nunca conseguiu sair da casa de sua família, que foi sendo passada adiante, de geração em geração. Verdade seja dita, o estado da casa era muito lamentável.

A despeito da situação, Mirian e Vássia se seguravam, firmes, sempre em companhia de sua vizinha tão querida e amada, a Dona Etimeia.

Dona Etimeia era uma linda senhorinha, de cabelos branquinhos e olhos azuis, que beirava seus 80 anos.

Sua família mal a visitava. Viviam em outro estado e tinham suas próprias agendas. Sua companhia, de verdade, era Weber, seu cachorrinho Boo, amigo inseparável nos últimos 14 anos.

Certo domingo, muito frio e nublado, Dona Eti, como de costume, convidou Mirian e sua filha para estarem com ela aquela tarde. Era de praxe passarem tardes e tardes jogando tranca e tomando chá...entre outros líquidos. 

E naquele dia, não foi diferente. Às 14h, as duas já estavam a sua porta, prontas para a jogatina.

Também era rotina terem quitutes para enfrentarem a jogata. Daquela vez, encararam a tão famosa torta de palmito da Mirian.

Passaram a tarde jogando. Era cada uma por si, como sempre. Dona Etimeia, já que o dia estava gélido, passou o tempo degustando seu brandy, a bebida das bebidas. Antes de cada shot, aquecia seu copo com uma vela, para fazer com que a concentração do líquido aumentasse e ela pudesse sentir o calor que ele proporcionava. Divino.

O dia passou rapidamente. Quase não notaram. Lá pelas 19h, Mirian decidiu que era hora de partir.

Ajudaram Dona Eti a arrumar a sala, abraçaram-se e saíram.

“Dona Etimeia, se a Sra. precisar de alguma coisa, sabe onde nos encontrar. Muito obrigada pela deliciosa tarde que nos proporcionou. Tchau, Weber, cuide de sua dona.”

Lá pelas tantas, quando Mirian e Vássia se preparavam para dormir, alguém, aos berros, tocou a campainha de sua casa.

“Mirian, Vássia, pelo amor de Deus, venham me ajudar, venham, o meu Weber não está bem, rápido, venham.”

As três, então, saíram correndo e foram ao encontro do dengoso cachorrinho.

Quando chegaram, já era tarde demais, ele estava desfalecido. Olhou, pela última vez, nos olhos de Dona Etimeia e deixou esse mundo.

Quanta tristeza. Ela não podia acreditar. Sua única família, pois assim o considerava. Deitou-se ao seu lado, mesmo com muita dificuldade, pela idade, e de lá não queria mais sair.

Vássia disse à mãe que achava que elas deveriam ajudar Dona Eti a levar Weber ao veterinário, para que tratassem do enterro.

Mirian deu a notícia à Sra, foi para sua casa, trocou-se e voltou, já dentro do taxi que as conduziriam ao Pet Shop.

“Dona Etimeia, teremos que embrulhar o Weber em alguma coisa. Se o taxista souber do que se trata, é que capaz de não querer nos conduzir.”

“Mãe, e se colocássemos o Weber naquela caixa da TV nova da Dona Eti? Ela não a usará para nada mesmo. O que acha?”

“Ótima ideia, Vássia.”

Colocaram o pobre cãozinho na caixa e seguiram para o carro. Dona Eti não se expressava.

“Posso colocar a TV no porta malas?”

“Não. Como ela é frágil, é melhor que a levemos em nosso colo mesmo, Sr.”

As duas entraram no banco de trás e Vássia, com a ajuda do Wanderley, o taxista, colocou a caixa no colo delas.

Partiram rumo ao veterinário, que o tratava há anos.

Vássia seguiu para sua casa.

O Pet não ficava a mais de 10 quilometros dali. Seguiram para Higienópolis então.

Depois de uns 5 quilometros rodados, Mirian notou que o taxista andava por caminhos inóspitos. 

“Para onde o Sr. está nos levando? Teria que ter entrado lá atrás.”

“Calma, Dona, nós só estamos dando uma voltinha.”

E seguiram por uma rua sem saída. Miriam viu quando ele entrou nela.

“Senhoras, isso é um assalto. Não gritem, não reajam. Se não fizerem nenhuma bobagem, sairão vivas e ainda poderão contar a história aos seus amigos. Agora, saiam do carro e deixem a TV.”

“O que? Não podemos deixar a TV, meu Senhor, disse Dona Etimeia.”

“Podem sim. Desçam já do carro, sem a caixa.”

E lá se foram as duas, rumo à digressão.

Ele, por sua vez, deu ré e se mandou com a caixa, com o Weber e a certeza de ter feito o roubo de sua vida.

As duas permaneceram, estátuas, na calçada, até que Mirian teve a grande ideia de ligar para a Vássia, que, prontamente, as buscou.

A reação de Mirian foi rir, gargalhar, chocalhar. Não se continha. Naquele momento, não parecia uma legítima Franco de Melo. De forma alguma.

Dona Eti, por sua vez, era só tristeza e inconformismo, afinal, não veria seu Weber ser enterrado e nem iria poder rezar por ele em sua campa.

Wanderley, todo fanfarrão, chegou em sua casa com uma TV de 32 polegadas. Seria um presente para sua esposa, afinal, faziam, naquele dia, bodas de prata...e ainda tinham uma TV de tubo.

Dona Isa, muito contente, abraçou seu marido, como se nunca tivesse desejado que partisse e a deixasse em paz. No fim das contas, ele tinha aparecido em casa com a TV de plasma que há anos prometia a ela.

Deu um abraço em seu marido, embora o que estivesse em jogo fosse a LG.

Abriu a caixa...e caiu esvaída.

Pobre Weber, pobre Dona Etimeia, pobre Dona Isa.

E como um dia escreveu Victor Hugo..."o destino é severo...sejamos nós indulgentes...o que é preto talvez não seja escuro"...o que parece uma TV talvez seja um cachorro morto.


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