A Convenção da Quarentena


A Convenção da Quarentena foi marcada para julho de 2019.

Seria um grupo seleto de convidados, apenas aqueles capazes de absorver o conteúdo denso dos três dias de evento, mas não somente, suficientemente fortes para conhecerem as consequências da sua participação.

O lugar escolhido para o compromisso foi a ilhota de Motu Nui, que fica colada na ilha de Páscoa, terra muito afastada de qualquer costa do planeta.

Por mais bizarro que o convite parecesse, não houve um, dentre os 500 participantes, que tenha deixado de ir. Estiveram todos lá, assim como planejado pelos organizadores.

Rapper Ty, Mark Blum, Pilar Pellicer, Alan Merrill, Li Wenliang, David Prowse, Ciro Pessoa, Ken Shimura, Paulo Gustavo, Tarcísio Meira, José da Silva, Maria Souza, Cleide Maria da Silva estavam entre os chamados.

Vieram de todas as partes do mundo, sempre refletindo sobre o que significariam aqueles dias de isolamento total.

E foram chegando, muito bem recebidos pela organização do mega evento.

Pré-cadastrados, com seus check ins disponíveis, embrenharam-se em seus quartos individuais.

Não puderam descansar muito da longa jornada, pois logo tiveram que se reunir no maior auditório já visto por eles.

Sentaram-se em confortáveis poltronas. A luz era ambiente. Havia uma imensa tela no palco e nada mais.

Nenhuma ideia do que aconteceria ali se tinha. O convite foi intransferível, escrito com palavras muito bem engendradas. Não havia espaço para recusa.

E lá estavam quinhentas pessoas, que nunca tinham se visto antes, aguardando o início do espetáculo.

Finalmente, o telão deu sinais. O som foi ensurdecedor. O público, pego de surpresa, entreolhou-se e o burburinho tomou conta da gigante sala.

Sem muito tempo para continuarem estranhando o estrondo, calaram-se ao verem a imagem na estrutura metálica logo em frente.

Era a reprodução de uma imagem ampliada de um vírus.

O som e o vírus.

A animação, então, começou.

Imagem após imagem, as pessoas começaram a se enxergar na tela. Seus pais, seu nascimento, infância, vacinas, adolescência, vida adulta, escola, trabalho, relacionamentos, descobrimentos, desilusões, frustrações, começos, recomeços, alegrias, medos, fragilidades, insatisfações, arrependimentos, amizades, reconstruções. Tudo apareceu ali, diante dos seus olhos.

Pessoas desconhecidas, tendo suas vidas expostas em uma tela de cinema, sem legenda, só retrato.

As reações eram as mais diversas, menos verbais, mais corporais.

A perplexidade e desespero tomaram conta de Motu Nui.

O filme não acabava e a música ecoava em single.

Mas, abruptamente, tudo cessou. O barulho findou e o palco apagou.

Sem exteriorizar nada, foram se levantando, um a um, seguindo pelas filas e corredores, dirigindo-se aos seus aposentos.

O primeiro dia da Convenção já tinha acabado, ou pelo menos era o que achavam.

Porém, em seus sonhos, reviveram toda sua história novamente: vivências, emoções fortes, uma evocação do passado, vidas vividas, até ali, de forma intensa, lembrando-se de que eram inspirações e que lutavam todos os dias para que tudo se tornasse mais fácil e simples.

Acordaram com seus espíritos renovados, prontos para o segundo dia.

Voltaram ao auditório.

No telão, uma luz divina, parecida com o sol.

Depois de alguns instantes, uma voz mansa e suave dava início aos trabalhos.

Vocês devem estar se perguntado por que estão aqui e qual o motivo de terem sido os escolhidos. Explico então.

Para isso, terei que abordar aspectos da história da humanidade. Vamos voltar um pouco no tempo.

Entre 1346 e 1353, a Peste Bubônica matou um terço da população da Europa. Mais de 50 milhões de pessoas sucumbiram a ela, acreditando que se tratava de uma punição divina.

Mas não. O fato é que ela foi um vetor de transformações no continente e uma série de mudanças começaram a acontecer nas áreas social, política e econômica dos países afetados. Até mudanças demográficas expressivas foram causadas por ela.

A varíola, cujas primeiras evidências da doença foram encontradas em múmias egípcias, datadas do século III, matou mais de 500 milhões de pessoas, estima-se.

Em 1798, descobriu-se que a vacinação era capaz de prevenir esse mal.

E veio a cólera, com sua primeira epidemia global em 1817, extirpando centenas de milhares de seres humanos também.

Motivos para o seu surgimento? Condições socioeconômicas e ambientais inadequadas.

O adoecimento por ela foram relacionados a fatores externos favoráveis à disseminação, bem como à falta de informação da população sobre a doença.

Contudo, medidas foram tomadas. Houve melhoria das condições de vida e saneamento básico, prevenindo assim futuros casos.

Mas não acabou por aí.

Quem aqui não ouviu falar na Gripe Espanhola, considerada a pior epidemia da história moderna com o território da Espanha?

Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram, entre 1918 e 1920, por um subtipo de vírus da influenza que não tinha cura.

O cenário era dramático, no meio do encerramento da Primeira Guerra Mundial, que já tinha matado cerca de 20 milhões de pessoas.

Todavia, o desenvolvimento de sistemas de saúde pública, em todo o mundo, foi estimulado à medida que cientistas e governos perceberam que não só essa, mas outras pandemias se espalhariam com o desenvolvimento feroz dos países.

Os povos ainda enfrentaram a chamada Gripe Suína (H1N1), que surgiu em 2009 e ainda pode causar novas proliferações.

O objetivo aqui não é apenas falar de história, mas principalmente alertá-los sobre os motivos que fazem com que parte dela tenha que ser contada sob esse ângulo.

Um grande líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro dirá o seguinte daqui a algum tempo:

- “O mundo entra em suspensão. O momento é de recolhimento, de silêncio. A experiência do isolamento social serve para mostrar quem nós somos. Temos que refletir e prestar atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano. Não vamos sair dessa experiência como entramos. Tomara que não.”

No auditório, todos atônicos, continuavam incomunicáveis, somente ouvindo aquela voz, que, com o passar do tempo, soava ainda mais branda.

E as palavras continuaram.

Vivemos hoje na Era do Antropoceno, caracterizada, acima de tudo, pelo impacto que o ser humano tem causado aos ecossistemas. O desenvolvimento econômico tem modificado de forma alarmante as condições climáticas do nosso planeta, num movimento de globalização e exploração do ambiente que não tem considerado os limites das fronteiras.

Estima-se que 70% das doenças infecciosas surgem da interação entre o homem e o meio ambiente, principalmente pela manipulação inadequada de animais silvestres e pelo impacto nos habitats naturais.

Os vírus exploram a nossa falta de comprometimento, a nossa mudança de comportamento.

As pandemias e epidemias só irão acabar quando nós decidirmos.

O Planeta tem pressa, não suporta mais esse modelo econômico fixado na produção, no capital e no lucro.

Países têm, entre si, relações de desigualdade, sendo, a minoria, desenvolvidos.

O desequilíbrio entre países ricos e pobres define até quem morre primeiro, aqueles com pouco ou sem acesso à imunização.

Neste momento, preciso tocar no conceito de justiça social. Conceito jurídico, relacionado às desigualdades sociais e às ações voltadas para a resolução desse problema.

O seu principal objetivo é promover o crescimento de um país para além das questões econômicas, e seu mecanismo busca fornecer o que cada cidadão tem por direito: assegurar as liberdades políticas e os direitos básicos, oferecer transparência na esfera pública e privada e oportunidades sociais.

Vejam. Surgimos há certa de 2,5 milhões de anos e ainda debatemos a uniformidade social.

Desconforto no auditório.

Ainda sem entender por que estavam ali, começaram a se questionar sobre aonde aquela palestra queria chegar.

A resposta veio imediatamente.

E é nesse momento que respondo por que estão aqui.

Em alguns meses, o mundo se deparará com um dos maiores desafios sanitários em escala global deste século.

Há tempos que a comunidade científica do campo das doenças infecciosas alerta que o advento de novas pandemias não era uma questão de “se”, mas de “quando” iria ocorrer.

E eles estavam certos.

Já sabemos quando virá a próxima. Dará sinais no final deste ano, ainda em 2019, e será devastadora.

Vocês estão aqui, escolhidos a dedo, para serem alertados antes do resto do mundo.

Consideramos que são fortes o suficiente para saberem.

E por hoje, encerraremos por aqui. Descansem e voltem prontos para amanhã.

Lá foram eles, insociáveis, em direção às suas habitações.

Novamente, sonharam a noite toda, mas dessa vez sobre suas famílias na terra, observadas, de outro plano, por eles.

O amanhecer foi mais desconfortável. É como se soubessem o que ocorreria.

Voltaram à grande sala. Sentaram-se em seus lugares e abriram seus olhos e mentes.

À meia luz, voltaram a ouvir a voz imperturbável.

Hoje, começamos o nosso último dia de reunião e eu sei que as sensações, que vêm do fundo de cada um de vocês, ninguém jamais conhecerá.

Vocês desencarnarão como consequência da peste que já nos rodeia e chegará avassaladora.

Como espíritos imortais, entenderão sua não mais existência física, sendo conduzidos pela espiritualidade amiga aos locais adequados para o seu refazimento.

Não deixarão o plano físico em vão. 

Como disse William Shakespeare, os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez.

Esse é o caso de vocês.

Das guerras às pandemias e o nosso fracasso em aprender como lidar com elas é o grande desafio da humanidade, porque não entenderam, até agora, os motivos que as fazem existir.

A passagem de vocês mudará o mundo. Não será em vão.

As pessoas viverão, após o colapso, com mais responsabilidade, cuidados, segurança e, acima de tudo, tentando revisitar as suas prioridades e entender o que podem mudar no hoje para que consigam colher frutos no amanhã de forma mais saudável.

E vocês?

Vocês, juntamente com os mais de 5,5 milhões de humanos que deixarão esse plano nos próximos dois anos serão reverenciados por abrirem mão de sua vida terrena em detrimento de um mundo melhor para os que ficarão.

Experimentem essa corajosa e única morte como um marco.

Vão em paz. Em breve, estaremos juntos, em outro plano, planejando os próximos passos dos homens.

Eles voltaram aos seus países e lares, elevaram seu espírito e enfrentaram seu destino calmamente.

Hoje, estamos aqui, reunidos, planejando o nosso próximo encontro: A Convenção Do que Ainda Não Aprendemos.

 


Comentários

  1. Sensacional!!! Adorei! Rezemos para que esta pandemia não tenha sido em vão!

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