Relato 2 – ...e nem fez as unhas...
Como escrevi antes, nos últimos meses, tenho conversado com executivos, dos mais diferentes setores, buscando conhecer suas trilhas de carreira e entender a volta à rotina após a pandemia.
São tantas histórias incríveis que vai
ficando difícil de escolher uma para contar.
Há alguns dias, relatei a história de
um colega que, após rever sua carreira, em meio à crise, hoje mora em Portugal
e trabalha para a UNESCO em missões pela África e América Latina.
Agora, resolvi escrever uma outra,
aparentemente inusitada, mas nem tanto, sobre uma colega que recebeu um
feedback inesperado de seu líder antes do início de uma reunião do conselho
administrativo da empresa onde trabalha.
Ouvindo seu relato, relembrei de
alguns episódios da minha saga profissional de quase 30 anos. Impossível não me
recordar e arrepender do não dito. Afinal, minha geração foi treinada para escutar
e calar.
Nasci no século XX, precedentemente à
queda do muro de Berlim, antes da crise das ideologias na nossa sociedade. A
razão ainda era garantia de possibilidade de compreensão do mundo por meio de
esquemas totalizantes.
Mesmo tendo pais que sempre
transcenderam o tempo em que vivem, tendo aprendido muito sobre o mundo e as
relações interpessoais igualitárias com eles, não puderam me proteger dos
limites das vinculações com os outros. Nem eles puderam, nem nenhum de nós consegue
fazer isso por ninguém. É vivendo, adaptando-se, habitando o recente e lutando que
se aprende.
Mas esse texto não é sobre mim, mas
sobre uma querida amiga, executiva, a qual em nosso bate-papo me relatou uma
situação corporativa que viveu.
Era começo deste ano, 2022, do mundo
pós-pandemia, e voltávamos a trabalhar gradativamente no formato presencial.
Diretora financeira de uma empresa de
médio porte, estava acostumada a participar do CA trimestral, apresentando aos
conselheiros e executivos o planejamento, fluxo de caixa, relatórios, ações
corretivas.
Foi, então, escalada para a reunião de
abril, que aconteceria na sede da organização.
Como de costume, fez a lição de casa.
Com o auxílio de sua equipe, montou sua apresentação e ficou a postos no dia,
aguardando sua vez.
Ela estava em uma sala com mais dois
diretores, que também esperavam para participar.
Em determinado momento, seu gestor
entrou no recinto e se sentou perto dela.
Queria saber se estava tudo certo para
a reunião, embora já tivesse visto e aprovado o material.
Os quatro ficaram conversando um pouco
sobre temas aleatórios, rindo, recordando como tinha sido o final de semana de
cada um.
Um dos diretores disse que estava
cansado, que havia passado o final de semana na esbórnia, bebendo com amigos.
O outro disse que estava tranquilo,
que tinha tirado os dias para descansar e dormir.
Ela, quando ia contar sobre seu sábado
e domingo, foi interpelada pelo seu líder, que disse: “você está abatida...nem
precisa contar pra gente o que andou aprontando...rsrsrsrs...está sem
maquiagem, sem um batonzinho...e nem fez as unhas...deve ter ficado em casa
mexendo em nosso ppt...rsrsrsrs.
E todos riram, inclusive ela.
Na hora, olhou para suas mãos e se deu
conta de que não tinha mesmo feito suas unhas. Sobre a maquiagem, lembrou que
nem tinha pensado nisso.
Sua divagação foi interrompida quando
o CEO bateu na porta e entrou para chamá-la, e seu chefe, para a apresentação
no conselho.
Ambos seguiram para a outra sala. Ela
fez a exibição do material e, como de praxe, foi muito questionada. Tinha as
respostas, ouviu sugestões e comentários e pronto, saiu-se muito bem, como há
anos vinha acontecendo quando se tratava de sua área.
Saiu do encontro feliz e voltou para
seu departamento. Contou aos seus gerentes que tudo tinha dado certo e mostrou
a eles os pontos mais críticos apontados pelos executivos.
Trabalhou o dia todo e foi pra casa
liberar a babá do seu filho de dois anos.
Até colocá-lo para dormir, não tinha
pensado no que tinha ocorrido mais cedo.
Mas quando foi tomar banho e pegou o
shampoo, viu suas unhas não feitas. Ficou ali, refletindo sobre toda aquela
conversa da manhã.
Foi para a sala onde estava seu marido
e contou pra ele o que tinha ouvido.
Sua reação foi: “faz parte...ele nem
pensou no que disse, amor.”
Ela relaxou e ficou assistindo à
televisão com ele, até que decidiram se deitar.
No dia seguinte, logo que chegou ao
trabalho, essa executiva mandou uma mensagem ao seu chefe e disse que precisava
falar com ele.
Ele a recebeu e começaram a conversar.
Ela foi direta ao falar para ele que
não tinha gostado do comentário que ele tinha feito no dia anterior sobre sua
maquiagem, batom e unhas.
“Você percebe que o que disse não tem
nada a ver com o nosso trabalho?”
Ele, meio sem jeito, não soube bem o
que responder. De fato, ficou espantado com as colocações dela. Ele nem tinha se
dado conta do que havia dito, muito menos achado que ela teria se incomodado
com aquilo.
“Desculpe-me se fui sem noção. Não foi
por mal. Foi apenas um comentário dentro do contexto.”
Ambos se davam muito bem, trabalhavam
juntos há anos.
“Eu sei que você nem pensou no que
disse, falou ela. E é por isso que resolvi vir aqui te dar esse toque, para que
você reflita, a partir de hoje, sobre o que não dirá a outras mulheres em
situações similares.”
“Sabe que ontem à noite, contei a
história ao meu marido e a reação dele foi como a sua: faz parte...ele não fez
por mal...nem pensou no que disse.”
“Obrigada pelo toque. De fato, não fiz
por mal, mas passarei a me policiar. É muito difícil toda essa reconstrução. A
estereotipização do que é feminino e do que é masculino ainda é muito presente.
Eu me sinto até mal agora, para falar a verdade, já que tenho consciência de
que o machismo reina, sobretudo em empresas.”
Esse cara é mais consciente do que a
média.
Ela sabe que o fez refletir e que,
provavelmente, não irá repetir o que fez.
Mas e todo o resto do mundo? E aqueles
que a teriam colocado pra fora da sala sem ao menos ouvi-la?
Há alguns anos, uma escritora chamada
Keli Alexandre, escreveu um artigo chamado: as mulheres realmente gostam de
usar maquiagem?
Basicamente, ela lamenta o fato de que
em pleno século XXI, há seres humanos que ainda se alienam sobre questões
ontológicas e continuam defendendo culturas específicas de forma bélica.
Interessante como ela coloca que a
cultura age como um antibiótico: mata a maioria das bactérias, mas há aquelas
que são resistentes a ele.
Os resistentes ela chama de loucos,
fazendo uma analogia a pessoas que racionalizam seus atos e aceitam culturas
prontas, sem questioná-las, imutáveis.
E a cultura é um fator que engana
demais. Quando achamos que não temos dúvidas, que questionar paradigmas vai
causar danos a nossa mente, estamos fadados a nos manter em nossa linhagem
greco-romana, como semideuses, e tratar os demais como inferiores e pagãos.
Esse texto foi sobre uma mulher, mas
facilmente referível a outros grupos minorizados, sem tirar nem pôr.
Cabe a todos nós superar a nossa linhagem
e agir em direção a ter as camadas de poder da sociedade representada pelo
diverso.
Sobre o marido dela? Ela acha que ainda
tem muito a entender e a mudar. Ela tem esperança.
E esse foi mais um relato importante.
Não dá para, depois dele, não ficar horas refletindo e seguir para a ação.
Que a
ponderação nos ajude na transformação.
Até a
próxima.
Loraine Ricino
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