Relato 3 - Tá ligado?

 

Esse terceiro relato é muito bom.
Um querido amigo, executivo de uma empresa, contou-me sobre o caso em uma das entrevistas que tenho feito, nos últimos meses, com o intuito de coletar histórias sobre a nossa volta à vida pós-pandemia.
Quem, como ele, não contratou pessoas, ao longo da COVID-19, usando uma plataforma de videoconferência?
Passou a ser algo natural até. Não podíamos estar fisicamente presentes nas organizações, mas a vida continuava e tínhamos que, inclusive, montar e remontar times de forma remota.
No caso dele, não só novos líderes foram admitidos por esse meio, mas diversos outros colaboradores, dos mais diversos níveis.
Empresa super tradicional, verticalizada, inchada de níveis hierárquicos. As entrevistas eram intermináveis e ele participou de várias delas.
Certo dia, um de seus diretos pediu a ele que conversasse com um candidato, que parecia muito bom, perfeito para a vaga que tinham.
A entrevista correu bem. O rapaz, excelente mesmo, era super jovem, não muito experiente, mas bem competente, fora da curva até.
Esse meu amigo, o diretor da área, fez uma única observação ao seu gerente antes que fechasse a contratação: “eu o achei condizente com o que é esperado por nós – acho que tem um potencial gigante – apenas analise seu perfil com um pouco mais de profundidade, considerando essa companhia, seus costumes, hábitos e correntes.”
Eu, que o conheço bem e também a empresa, quis entender melhor essa sua ressalva, até por curiosidade.
Como escreveu, há poucos dias, um outro grande e querido amigo, o Rodrigo Dib, o que não faltam por aí são lindas frases sobre valores organizacionais escritas em sites, ditas nos onboardings, em colocações fortes em reuniões de time, na mídia.
Mais do que nunca as pessoas, especialmente as mais novas, procuram estar em lugares conectados com seus valores e crenças.
Então – quando ele faz esse comentário ao seu gerente, pareceu-me que teve dúvidas sobre a aderência do candidato ao perfil da companhia.
Nós sabemos e temos acompanhado que há sim grandes empresas tradicionais, com traços fortes de hierarquia, processos burocráticos e regras comportamentais mais rígidas, que vêm tentando se transformar para atrair os jovens.
Mas mudança de hábitos e crenças em uma empresa são o reflexo da revisão e implantação de processos e estruturas, e essa mobilização só acontece, de fato, quando a água bate na bunda...e, mesmo assim, essa conversão não ocorre do dia pra noite.
O que pode acelerar tal mudança?
Crises, sem precedentes, podem culminar com um repensar de um modelo ultrapassado de negócio.
A expressão das startups no mercado, com tanta força no mundo corporativo, introduziu novas tendências ao modelo de gestão tradicional, que começa a ser questionado.
Enfim, a mudança de chave é uma jornada.
Voltando ao relato, eu conheço esse executivo há anos e sei que, embora da geração X, como eu, compreende que o mundo mudou e que, portanto, novas características desse movimento vieram: ausência de valores e regras, imprecisão, individualismo, pluralidade, produção em série, espontaneidade, liberdade de expressão.
Será que ele tinha medo de bancar a diversidade em sua área de pricing?
Não parecia ele.
O que me disse é que estava um pouco cansado de nadar contra a maré e que não acreditava mais no discurso da valorização da pluralidade da sua empresa.
Perguntei a ele se não faria sentido ele mudar de trabalho ao invés de desistir de suas crenças?
Decisão difícil, é claro, ainda mais quando já se está há anos em uma mesma instituição, tendo família, filhos, contas a pagar.
E não basta se inconformar. É preciso reagir e promover a mudança.
Mas cada cabeça uma sentença. Nem sempre temos o fôlego necessário.
Encurtando a história, o garoto foi contratado.
Destacou-se de cara, com facilidade. Não demorou muito para entender o negócio e sobressair.
O tempo passou e as reuniões presenciais começaram a voltar.
Uma vez por semana, acontecia o Comex, reunião da qual participavam os diretores, VPs e presidente da empresa.
Não era incomum a participação de gerentes e coordenadores nesse encontro, convidados para fazerem apresentações aos executivos.
Esse novo colaborador foi chamado pelo seu gestor para participar de um determinado Comex.
Ambos fizeram um jogral e deram o recado.
O gerente, mais comedido, parecia estar dando uma palestra, já o novo integrante do time expressou-se mais levemente, sem meias palavras, colocando pra fora o conteúdo como se estivesse em uma roda de amigos, mas com muita propriedade.
Esse meu amigo me disse que começou a ver as pessoas se mexendo na cadeira, um pouco desconfortáveis com tal dinâmica.
Era como um vídeo sem sincronia de áudio. Ninguém estava acostumado a ver tanto despojamento.
Não se podia reclamar. A exposição tinha sido espetacular.
Vieram os questionamentos, como de praxe. Nada pode ser perfeito. Há que se expor, achar buracos nos conteúdos dos outros.
Quantas vezes não vemos, nessas reuniões, pessoas preparadas para falar, mas não para ouvir? É como se já fossem para ela com um roteiro de perguntas e as fazem mesmo que já tenham sido respondidas nas explanações.
Não deixa de ser um modo de exposição se si mesmo, não é mesmo? Apesar de desnecessário em alguns casos.
Uma das perguntas foi dirigida ao jovem contratado.
E ele não teve a menor pachorra em dizer: “mas nós acabamos de apresentar e responder exatamente isso, tá ligado?”
A sala veio abaixo. Todos caíram na gargalhada.
Foi difícil retomar o controle.
Com o controle recuperado, o rapaz, despretensioso, soltou: “mas posso explicar mais uma vez, sem problemas.”
E o fez.
Praxe também era o fechamento da reunião feito pelo CEO. Não foi diferente. Passou o recado e terminou da seguinte forma: “tão ligados?”
Não é preciso dizer que esse acontecimento virou trend na empresa. Mil figurinhas de WhatsApp foram criadas e despejadas nos grupos.
O garoto virou hit.
Está lá ainda, bombando e entregando, distinguindo-se, sempre usando seus bordões da geração Z.
Enquanto houver quatro gerações trabalhando juntas em organizações, são poucas as manobras daqueles que se incomodam com o episódio acima descrito: uma delas é entender que o engajamento dessas novas gerações é parte integral do job description até dos mais “dinossáuricos”.
Quem, hoje em dia, em uma grande organização tradicional, pós-crise / em crise, pode ser dar o luxo de perder um talento como esse para uma startup, hein?
Tá ligado?
Até a próxima.
Loraine Ricino

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