O racismo, já existente, manifestado a partir da pintura de uma cerca!
Já que comecei a contar as minhas aventuras vividas, no
estado do Bill Clinton, entre 1990 e 1991, pensei em continuar um pouco mais
nessa linha. Como estou num processo de nostalgia, sentindo saudades do tempo
em que vivi lá e de não poder mais reviver aqueles momentos, vou procurar
mantê-los vivos por meio da escrita. O meu desejo, ao escrever todos esses
acontecimentos, não é o escapismo, de forma alguma. Não estou recorrendo a
devaneios ou imaginações, desconsiderando a minha atual realidade. Não sou um
poeta romântico do século XIX, para o qual o mundo real era sempre uma
frustração dos seus idealismos e sonhos. Não estou me refugiando dos meus
problemas e nem pretendo ir ao extremo da rebeldia dos poetas daquele século, a
morte...kkkkkk. A única coisa em comum entre esse meu estado de espírito e o
Romantismo é o fato de que antes dele ser tornar um movimento, era apenas uma
atitude e também um estado de espírito. Além disso, ele é a arte do sonho e da
fantasia e valoriza as forças criativas do indivíduo e da imaginação popular.
Digamos que eu tente representar a imaginação popular no meu Blog. Isso posto,
vamos a mais uma das minhas péLôlas. Lá na fazenda, onde vivi por um ano, em
Lynn, Arkansas, éramos cinco filhos, quatro homens e eu, a filha postiça. O Van
e a Janice tiveram quatro filhos. Os nomes dos rapazes, por ordem de idade, do mais
velho para o mais novo, são: Terry,
Billy, David e Randy. Quando cheguei lá, em 1990, o único que morava com a
gente, na mesma casa, era o Randy. Ele tinha 13 anos. Todos os dias, após a
escola, e aos finais de semana, ele ajudava o Van na fazenda. O David, que
fazia faculdade em Jonesboro, vinha para Lynn aos finais de semana, também para
ajudar o pai na fazenda. Jonesboro ficava a cinquenta minutos de Lynn. Era a maior
cidade da região, lugar para onde íamos, por exemplo, para fazer compras de
supermercado, jantar em algum restaurante, como o Pizza Hut. Pasmem...Jonesboro
também era pequena, só tinha 67.263 habitantes. No entanto, se compararmos esse
número com a quantidade parca de pessoas em Lynn, 345 habitantes, para os
moradores de Lynn, Jonesboro era uma São Paulo...sem o trânsito, é claro. Muito
divertido tudo isso. Eles não conseguiam ter noção da dimensão de São Paulo e
do quanto aquilo tudo era diferente para mim...e nem do quão “HILLBILLY (caipiras)”,
no bom sentido, eles eram. O David ainda não era casado. Ele namorava, há anos,
uma amiga minha, a Jill Deeter. Ela estava na minha classe naquele Senior Year. O Billy já era casado com a
Lana, que tinha um olho verde e o outro azul. A coisa mais linda. Enquanto eu
estava lá, no dia 17 de setembro de 1990, eles tiveram sua primeira filha, a
Breanna. Depois, ao longo dos anos, tiveram mais dois filhos, a Miranda e o Zach.
Todos lindos. O Billy, durante a semana, trabalhava em outra cidade, com Chicken Beds. Aos finais de semana,
quando voltava para casa, também ajudava o Van na fazenda. O Terry, que era o
mais velho, não era casado. Ele estava no último ano de veterinária em uma
faculdade de Louisiana, estado mais ao sul do país ainda. Vinha para casa
poucas vezes ao ano. Nós fomos visitá-lo umas três vezes em um ano, que eu me
lembre. Enfim, todos tinham suas vidas, mas também viviam a vida do pai e
trabalhavam, arduamente, para ele. Eram pagos pelo empenho e desempenho, os
quatro eram. Segundo o Van, bem pagos...mas havia controvérsias. Os meninos
achavam que podiam ganhar bem mais pelo que faziam, pois ralavam, ralavam de
verdade, para manterem toda aquela imensidão de fazenda em pé. Mas, no final do
dia, aquilo tudo seria deles, então, fazia sentido manterem o ganha pão da
família. Contei a história dos meus host brothers para que entendam o contexto.
Do mesmo jeito que eles ralavam e tinham suas atribuições, dentro e fora de
casa, durante a semana, no caso do Randy, ou aos finais de semana, no caso dos
outros, exceto do Terry, eu também tinha que ralar e tinha sim as minhas
atribuições. Aliás, elas foram estabelecidas logo na minha primeira semana na
família. Quais eram as minhas atividades? Eu era responsável por passar
aspirador na casa toda, mais de duas vezes por semana (a casa era toda de
carpete), eu era responsável por levar o lixo para fora, todos os dias, no
final do dia, após a sujeira do jantar, eu era responsável por cortar a grama que
ficava no entorno da casa onde morávamos (com a máquina de cortar grama), tinha
que arrumar a minha cama, lavar as minhas roupas e passá-las, se quisesse que elas
não ficassem amassadas como as deles, eu lavava a louça do jantar, embora isso
não fosse uma tarefa fixa, pois eu a dividia com a Janice, e, nos meses mais
quentes do ano, tinha que pintar a cerca que ficava também no entorno da casa.
Essa cerca protegia a casa do gado e dos cavalos, que ficavam lá mesmo,
ocupando o mesmo espaço em que a casa estava. Era uma trabalheira. Imaginem
quando descobri que teria que fazer tudo aquilo. O problema não era o trabalho,
pois eu sempre ajudei muito em casa no Brasil, o problema era conseguir ter a
clareza do que me competia de fato. No começo, por causa do inglês, sofri para
entender, mas logo fui pegando o jeito. Eu até passei a fazer mais coisas do
que somente as atribuições que competiam a mim. Várias vezes, quando o Randy tinha
jogo de basketball, durante a semana, e não conseguia ajudar o Van, eu mesma ia
com ele, dentro do trator ou da caminhonete, para jogar feno ao gado no meio
dos diversos pastos que ele tinha. Várias vezes fiz isso. Quantas vezes não fui
cortar a grama da igreja, naqueles carrinhos de cortar grama? Várias vezes.
Nesse caso, ganhava US$ 50,00 pelo trabalho. Lá em casa, fazia parte, não tinha
remuneração pelo trabalho desempenhado...era a ajuda que cada um tinha que dar para
que morássemos em uma casa menos bagunçada, menos suja, enfim. Quando começou o
calor, em 91, chegou a hora de cuidar da cerca. Não teria jeito. Eu teria que
encarar toda aquela extensão de cerca, pintá-la inteirinha de branco. Aliás,
ela estava num estado bem precário, ruim, bem desbotada, estragada, tudo por
causa do tempo frio, da neve que havia caído entre 90 e 91. Vamos lá. O que fiz
eu para encarar o desafio? Todos os dias, depois da escola, pegava meu
banquinho, tipo aqueles usados para ordenhar vacas, amarrava-o na cintura e ia
lá pra fora. Fiz um cronograma, para poder estabelecer um prazo para a finalização
da tarefa. Tinha que ficar uma hora e meia, pelo menos, todos os dias, sete
dias por semana, nessa lida, para conseguir terminar o job em, mais ou menos,
dois meses. Se eu pudesse fazer só isso ao longo das minhas tardes, terminaria
mais cedo, mas eu também tinha que estudar, fazer lição de casa, trabalhos da
escola, tinha minhas outras tarefas na casa, então, só poderia despender uma
hora e meia do meu dia para essa arte. E assim foi. No começo, os primeiros
metros não ficaram muito bons. Eu tinha que, antes de pintar, lixar toda a
madeira. Não tinha uma parte que estivesse boa. Por isso, confesso, com a minha
vasta inexperiência, deixei a desejar nos primeiros metros. Mas fui aprendendo
e o trabalho foi ficando profissional. Tinham dias em que eu até me empolgava.
Comecei a procurar conciliar certas coisas. Já que estaria exposta ao sol
durante uma hora e meia todos os dias, resolvi que tomaria sol enquanto pintava
a certa. Passei a colocar um maiô, bem discreto, e um shorts por cima dele,
para ir ao trabalho. Eu também comecei a pegar o meu Walkman Toca Fita K7 da
Sony, colocar uma K7 legal e seguir para o meu job inusitado. E foi isso que
comecei a fazer, dia após dia, sem tréguas. Fui me aprimorando, ouvia minhas
músicas do Garth Brooks, por quem estava in love, e, ao mesmo tempo, fui me
transformando em uma pessoa de outra cor. A minha tez já não era a mesma. O revestimento
externo do meu corpo, maior órgão do corpo humano e o mais pesado também, estava
passando de quase sem cor para quase preto. Embora eu possa ser considerada uma
pessoa “branca”, sempre soube que a minha quantidade de melanina, pigmento que
dá cor à pele, era grande. Aliás, a quantidade de melanina dos meus pais,
verdadeiros, brasileiros, e do meu irmão, também é grande. Nós quatro, quando
tomamos sol, por pouco tempo que seja, mudamos de cor. Vamos da cor clara para
a cor escura, parda em poucos dias. Sempre foi assim. Após férias de verão no
Brasil, eu chegava a ser chamada de Alcione, a Marronzinha, para que tenham uma
idéia. Pois bem, com a mudança na cor da minha cútis, fui sentindo um certo
incomodo dentro de casa, mais por parte do Van e da Janice. No jantar, quando estávamos
todos juntos à mesa, sempre me perguntavam sobre como tinha sido o dia e se eu
tinha tomado muito sol. E eu contava o que tinha feito, contava sobre a melhora
na pintura da cerca, sobre o fato de estar aproveitando para tomar sol e para
ouvir música, etc. Num certo dia, durante um jantar específico, o Van resolveu
colocar para fora o incomodo que, evidentemente, estava sentindo. Eu tinha
minhas desconfianças, mas não queria acreditar no poderia vir a ouvir da boca
dele. Mas enfim, nesse dia, o Van, com todas as letras, pediu-me para que eu
parasse de tomar sol, pois eu estava mudando de cor, ficando muito escura para
o gosto deles. Sério? Muito sério! Nos Estados Unidos, para quem não sabe, o
racismo chega a extremos contra os negros, índios, asiáticos e
latino-americanos, em especial no sul do país. Naquele jantar, eu presenciei um
caso de racismo explícito e claríssimo. Para eles, para os americanos,
sobretudo do sul, o fato de outra pessoa ser negra é quase um crime que merece
a pena do tratamento desigual. No Brasil, desde 11 de junho de 2012, o racismo
foi inserido, no novo Código Penal Brasileiro, na lista de crimes hediondos. Eu
não surtei ali não. Eu já tinha sido muito bem informada, antes de embarcar
para lá, sobre essa questão e sabia para onde tinha ido. Sabia que eu teria que
me adaptar a eles e não eles a mim. Isso faz parte da cultura deles, que é
diferente da minha, do que eu acredito. O que tentei fazer, durante a conversa,
foi puxar deles mais informações sobre essa ojeriza, sobre a prepotência deles
de acharem que uma pessoa que tenha a cor de pele diferente da cor de peles
deles deve ser punida por meio de um tratamento desigual. Embora já soubesse de
onde tudo aquilo vinha, da história, enfim, fique sentada ali, ouvindo as barbaridades,
que para eles, faziam todo o sentido do mundo. Eu não voltei para o Brasil
imediatamente após esse episódio. Não voltei mesmo. Aquilo tudo estava sendo
uma experiência pela qual não passaria em outro lugar, sobretudo no Brasil,
onde o racismo é camuflado e todo mundo faz questão de não enxergar. Como
sempre fiz na vida, absorvi o que achava que fazia sentido, descartei o que não
tinha a menor importância para mim, entendi a história deles, refleti sobre a
minha e sobre a história do meu país e cresci um pouco mais. Não me rebelei.
Não vinha ao caso fazer isso. Simplesmente, parei de tomar sol. Alguns de vocês
devem pensar que fui conivente e que, portanto, também sou racista. Eu afirmo
que, diferentemente do que acontece, por exemplo, na China eu não tratei o tema
como um tabu, como um tema que as autoridade preferem ignorar. Pelo contrário,
tivemos uma discussão séria sobre relações sociais. Eles com suas crenças e eu
com as minhas. Não os desrespeitei e também não fui desrespeitada. Apenas procurei
não os julgar e me manter fazendo com eles aquelas aulas de história,
geografia, etnia, culturas, etc. durante o resto do tempo que tinha para ficar
em Lynn. Aos poucos, a minha cor foi voltando a ficar mais claras e eles,
a família, como um todo, mais tranquila,
certos de que tinham feito o pedido correto para mim. Talvez a minha voz
dissonante tenha marcado um começo positivo na tentativa de mudar a forma de
pensar deles. Se sim, já foi um grande ganho. Caso contrário, mesmo assim, não
deixei de exercer o meu papel, como sempre procuro fazer, exercer bem o que
considero serem os meus papéis na minha vida. E foi isso. Mais uma história
sobre a minha experiência em Lynn, Arkansas. E houve muitas, mas muitas outras.
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